KAIOWÁ
Ñembo'e

Com o Mbaraka em punho não há nada a temer

 

Kuña Verá Rendy, este é o nome da mulher que há tantos anos luta pela demarcação de seu tekoha, que dia e noite reza pela comunidade, espalhada em algumas das reservas do sul do estado de Mato Grosso do Sul. Helena Gonçalves, o nome é uma mera formalidade imposta pelos brancos, fez questão de nos entregar um pedaço de papel com seu nome em guarani. Aos 68 anos, é vista como porta-voz da comunidade do Mbarakay, território localizado no município de Iguatemi. A rezadeira é a líder espiritual da comunidade, o que significa estar à frente dos rituais e orações, e ter conhecimento sobre as plantas medicinais. Além disso, Helena ganhou destaque por fazer parte do Conselho de Mulheres Guarani e Kaiowá. Motivada pela esperança de um dia retomar seu tekoha, ela não mede esforços, vai a Brasília conversar com autoridades de órgãos como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) quantas vezes for necessário. Os cabelos longos e escuros escondem a idade, mas os vincos no rosto revelam a experiência de uma mulher que já viveu e sofreu muitas coisas.

 

Sete da manhã ligamos para informar que estávamos a caminho de Limão Verde, reserva indígena localizada no município de Amambai, onde vive com a família. Não foi preciso dizer nada, ela sabia.

 

- Alô? Tô esperando vocês aqui, me avisaram que hoje tem visita.

 

Os espíritos anunciaram. Helena diz que mantém contato com os seres divinos e que com o vento da manhã chegou a notícia de que a casa receberia visita. Aos mesmos espíritos, a rezadeira pede que lhe devolvam sua terra. O local sagrado onde nasceu, viveu e de onde pertencem as divindades que sopram recados em seus ouvidos de idosa. É a crença do povo que fortalece a luta. Retomar um território simboliza na cultura Kaiowá preparar o tekoha para o retorno dos espíritos da terra, que foram embora quando o homem branco dominou o território. Além disso, as retomadas são motivadas também pela garantia do futuro das crianças e dos jovens da comunidade.

 

- Uma vez meu neto falou pra mim 'A hora que nós irmos na tekoha, aqui você vai deixar?'. Claro que eu vou deixar! Claro que eu vou deixar isso aqui. Isso aqui eu que plantei, eu que formei. Eu não tô idosa ainda. Se dá, eu vou no meu tekoha, eu vou recuperar. Não é pra mim, é pra você, eu falei.

Helena vive com o marido, filhos e netos na Limão Verde.     A reserva começou a ser ocupada na década de 1970, quando alguns indígenas decidiram se mudar para o local. Na década seguinte, a expulsão dos povos indígenas de seus territórios se intensificou com o crescimento da atividade agropecuária e a reserva serviu como um abrigo para famílias desalojadas no sul do estado. Para lá foram deslocados após serem expulsos do seu tekoha, o Mbarakay. Nem todos puderam ir para o mesmo lugar, Helena conta que alguns foram viver na Reserva Amambai, localizada no mesmo município; na Sassoró, do município de Tacuru e na aldeia Taquaperi, em Coronel Sapucaia.

 

A pequena casa de alvenaria em que vivem pertence ao governo, segundo a Kaiowá. A família vive em três cômodos. Chamam a atenção os fios elétricos, mas o fornecimento de energia está sempre em falta.  A geladeira se mantém vazia, abrigando apenas algumas garrafas d’água para o típico tereré. A rezadeira reclama também da precariedade do abastecimento de água na reserva. Não é todo dia que o encanamento funciona. Como forma de se prevenir, quando a água chega nas casas é estocada em grandes tambores para o consumo e afazeres domésticos. Helena tem o mínimo para sua sobrevivência, mas não se sente em casa. Não significa nada, não lhe pertence, apenas pegou emprestado.

 

- Essa minha casa é do governo, né? Esse é do governo. É bom, mas também não é bom pra mim. Bom mais é quando eu tava no meu tekoha, aquele lá é meu. Esse aí é alheio, não é meu.

Helena não pertence à terra que habita. Por diversas vezes repete: esse tekoha não é meu, o capitão emprestou pra mim. Ao andar pelo quintal da casa, mostra as poucas plantas que conseguiu cultivar no terreno arenoso e infértil da Limão Verde. Já nos tinham alertado que as mulheres Kaiowá falam sobre o que querem, independente da pergunta. Com a rezadeira não foi diferente, as respostas sempre se encaminhavam à sua missão: a cura. Fala das plantas com a nostalgia de quem as trouxe do tekoha, agora desmatado. São ervas medicinais, curam desde a diabetes até doenças no útero, como ela mesma diz. As poucas mudas são motivos de vitória, por terem sobrevivido em um chão tão pobre.

Helena celebra uma das poucas plantas trazidas do seu tekoha que sobreviveram no solo da aldeia

Da estrada é possível ver o pequeno cultivo de flores e plantas medicinais de Helena

O tekoha é mais do que um lugar sagrado. Ele significa prosperidade. No território de origem nunca faltou comida, havia plantação de moranga, batata, abóbora, milho, feijão e arroz. Galinhas e porcos eram criados também. Na reserva, para alimentar a família, somente a mandioca vingou na terra. Helena reclama da sua invisibilidade perante o governo, por não receber apoio como doações de cestas básicas. Na partida de nossa primeira visita, a rezadeira se reuniu com outros familiares para o almoço e chamou nossa atenção para a refeição do dia.

 

- Você tá vendo essa mandioca? Essa mandioca é nosso pão de hoje.

 

Essa não foi a única vez que estivemos lá e a alimentação do dia era pouca, ou somente aquela. Em outra das nossas visitas, feliz porque ganhou lenha para cozinhar, Helena colocou no fogão improvisado com tijolos no chão a mandioca para cozer, e nos contou que, às vezes, ela e a família sobrevivem somente da raiz e chimarrão.

A mandioca é uma das poucas plantas cultivadas na reserva e servem de alimento para a família

O chimarrão não é um alimento, mas serve para sustentar os indígenas

Viver em reserva é um tempo de angústia para os Kaiowá. Além do pouco espaço para viverem sua cultura e para cultivarem o próprio alimento, o local é permeado por conflitos entre os próprios moradores, pois muitos são de regiões, parentelas e até etnias diferentes. A divergência se deve às disputas para ocupar o cargo de capitão da aldeia e pela diferença no modo de viver entre as famílias. Além do conflito por liderança, há disputas por recursos, falta de comida e fofoca. Mãe de cinco, Helena perdeu um filho em uma briga na aldeia.

 

- Muitas pessoas perguntou: por que tem muito homicídio de Kaiowá Guarani? Porque de tristeza. Porque não tava no lugar dele, não tá no tekoha dele. Aqui, meu filho mataram aqui porque ele não gosta. Mataram aqui. Agora já fez quase 11, 12 anos, mataram em 2005 aqui.

 

A rezadeira conta com muita tristeza a morte do filho, foram os espíritos que vieram avisar que algo de ruim aconteceria. Ela se culpa, acredita que se estivesse no Mbarakay, nada teria acontecido. A reserva para Helena é um lugar perigoso e insustentável para se viver. Protegida pelo mbaraka e suas preces, se sente perseguida no local e relata algumas das agressões que já sofreu em Limão Verde.

 

- Porque aqui não dá para nós. Nós não temos nada. Nós estamos perseguidos aqui. E pra mim já veio três vezes aqui, me bateram aqui dentro da minha casa. Queriam me matar, mas não mataram.

 

O jeito sereno de Helena não se deixa intimidar facilmente. Mesmo com os históricos de violência que presenciou, não tem medo das ameaças ou de morrer por seu tekoha. Participou de pelo menos quatro retomadas nos últimos 15 anos e foi expulsa em todas as tentativas. Mesmo com os despejos, não perdeu a esperança de retornar à terra sagrada.

 

- Eu falei, vamos morrer tudo lá. Fazendeiro falou pra nós que vai matar tudo. Não tem medo. Vai morrer mesmo. Deixa pistoleiro me matar, algum dia o pistoleiro vai morrer também. Algum dia o fazendeiro vai morrer.

A preocupação de Helena hoje é o tekoha. Retomar o Mbarakay é muito mais do que recuperar o território. Como rezadeira, sente falta de um local para orar na reserva e lembra que sua casa de reza do tekoha, onde os batismos dos alimentos eram feitos todos os anos, foi destruída. Para os Kaiowá é na casa de reza que o fortalecimento do povo Guarani Kaiowá é conquistado. Ela se entristece pelas mudanças no território tradicional, mas se orgulha, porque mesmo com todas as transformações da terra, ainda conhece tudo por lá.

 

- Uma vez eu passei lá [Mbarakay], mudou tudo, meu tekoha não mudou. Queria acabar, mas pra mim não acabou. Aquele tinha um cerradão, lugar de remédio, cai tudo e mesmo assim, não esconde.

Meu povo pelo mbarakay

As comunidades Mbarakay e Pyelito Kue formam juntas um só tekoha. Segundo nota técnica da Funai, Pyelito e Mbarakay correspondem a “um conjunto de várias (micro)regiões internas a eles, a cada uma destas correspondendo a origem de um determinado grupo macrofamiliar Guarani Kaiowá”. De acordo com o documento, há registros de Guaranis Kaiowá na região desde 1897. A área foi requerida por um “particular” na década de 1940 e em seguida, vendida a um fazendeiro. O proprietário da terra passou a pressionar para que os indígenas saíssem do local e acionou o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) para tomar as medidas cabíveis.

 

Enquanto algumas famílias foram expulsas e migraram para reservas e aldeias, outras permaneceram sob a condição de mão de obra na fazenda. Helena afirma que luta pelo tekoha desde a década de 1980, quando foram expulsos. Desde então, foram várias tentativas de retomada, quando as famílias de Mbarakay e Pyelito se reuniram para reocupar a terra por meio de acampamentos. A recepção dos proprietários não é pacífica, as consequências são violentas, como a perda de vidas, espancamentos e ferimentos sofridos pelos indígenas.

 

Em uma das ocupações, ocorrida em 2009, um grupo de Kaiowás foi espancado, ameaçado, vendado e jogado à beira da estrada em uma desocupação promovida por pistoleiros, segundo informações do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF/MS). Na expulsão, o indígena Arcelino Teixeira desapareceu e seu corpo jamais foi encontrado. Seis anos antes, os indígenas que tentavam retornar ao tekoha foram expulsos por jagunços de fazendas da região, que invadiram o acampamento da comunidade, torturaram e fraturaram pernas e braços dos que não conseguiram correr, como crianças e idosos. Helena não se esquece do episódio, quando seu tio que era adolescente morreu.

 

- Já morreu muito, muito. 2003 nós entramos lá, perdeu um de 12 anos. Fomos de novo, em 2015, perdeu dois, foi três. Perdeu mais, mas o fazendeiro negou. Foi com pistoleiro. Mataram com arma de fogo, por isso que nós sabemos.

O sofrimento da comunidade se tornou visível em 2012. Perfis no Facebook começaram a incluir o sobrenome ‘Guarani Kaiowá’. Exaustos de tanta injustiça, expulsões e violência, os indígenas de Mbarakay e Pyelito Kue escreveram uma carta na Aty Guasu daquele ano, que ficaria conhecida no mundo todo. O relato tomou repercussão após ter sido interpretado como um suicídio coletivo, mas afirmava que os Kaiowás permaneceriam ali, lutando pelo seu território de origem. A carta denunciava o genocídio e implorava pela atenção de um país que nem considera índios como humanos.

 

“Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas.

Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay.

(...) Pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.

Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos”.

 

Apesar do impacto nacional e internacional, nada mudou para a comunidade. Mbarakay e Pyelito Kue continuam sob a posse de latifundiários enquanto seus verdadeiros donos seguem espalhados em reservas e aldeias do estado. Para Helena, a cor de sua pele denuncia a quem pertence a terra.

 

- Você tá vendo essa terra aqui na minha mão? Você tá vendo? Olha pra minha cor. Eu sou da terra. A terra não é de vocês brancos.

A rezadeira é uma liderança reconhecida não só pela comunidade, mas pelos Kaiowá. Envolve-se na luta política, tem voz ativa nas assembleias indígenas e fora delas, com os remédios tradicionais transmite sabedoria ao seu povo. Além disso, Helena na posição de rezadeira auxilia nas retomadas. Para reocupar o tekoha é necessário que se reze dias antes, no caminho e na chegada ao território se ele for retomado. A terra é então batizada e renomeada. Para os Kaiowá se não houver o batismo do território tradicional, ele é perdido.

 

- Pra entrar, reza mesmo. Tem também a reza pra proteger nós. Por isso que índio Kaiowá Guarani tem mais poder, tem reza pra entrar. Por exemplo, nós pra entrar daqui pra nossa tekoha, tem que rezar 30 dias. Tem que rezar bastante, bastante. Tem que rezar uma hora, às vezes até amanhecer. Assim que Kaiowá Guarani rezava pra entrar no tekoha.

 

Nas preces tudo é mostrado aos Kaiowá, do passado ao futuro. Na espera do tempo certo para retomar o Mbarakay, a rezadeira revela que em breve a vida será diferente. Fartos da reserva e cansados da demora judicial, seguem na batalha: reocuparão novamente suas terras tradicionais.

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