KAIOWÁ
Arandu

Luta que se faz pelo estudo

- Com esse degrau que tô tendo, posso ser a voz da minha comunidade, principalmente as mulheres que não conseguem falar, entender o que está passando. Meu objetivo é isso, ter a voz das pessoas que não conseguem passar, repassar, mostrar o nosso sofrimento.

 

Clara Barbosa, conhecida em guarani como Mbo'y Jeguá resiste pelo seu tekoha - Laranjeira Ñanderu -  de uma forma diferente: estudando. Aos 43 anos, a mestranda em Sociologia na Universidade Federal de Integração Latino-Americana (UNILA), pesquisa sobre suas iguais: as indígenas, sem-terra e quilombolas que, como ela, lutam pelos seus territórios. É a força dessas mulheres na resistência e no sofrimento cotidiano que a incentiva em continuar sua trajetória pelo tekoha.

 

Clara se formou em Licenciatura Indígena pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e era professora na aldeia Jaguapiru, localizada no município. Concursada, tinha uma vida estável, quando decidiu largar tudo para reivindicar e reocupar o tekoha. Uma mulher serena, de cabelos escuros em um corte chanel, é ativa nas redes sociais, onde expõe o orgulho que sente de ser uma Guarani Kaiowá.

 

Chegar até aqui não foi fácil. Para cursar o mestrado, Clara foi longe, se mudou para Foz do Iguaçu. Por ser mulher e indígena, sofre preconceito na universidade, mas resiste, mesmo que a centenas de quilômetros de sua comunidade. Hospedada na casa de uma amiga, ela passa meses longe da família que mora no território de origem, no município de Rio Brilhante.

Estudar se mostrou como luta. Para ela, só o conhecimento pode empoderar os indígenas e parar o genocídio sofrido há tantos anos, fruto da disputa pela terra e da expansão da agropecuária, que se intensificou no Mato Grosso do Sul há cerca de 40 anos. Motivada pelo extermínio dos Guarani Kaiowá, a educação surgiu como oportunidade de proteger sua etnia.

 

- O que me motiva hoje é que eu quero debater, os fazendeiros, ruralistas, esse bancada evangélica, que está em Brasília. Eu quero ser a voz da minha comunidade, principalmente dos meus parentes que não tem voz pra chegar lá em Brasília. Pedir um pouco de paz, um pouco de espaço pra nós, isso me motivou a ser essa pessoa, a voz dos meus parentes, a voz da comunidade.

 

A vida acadêmica é como uma experiência, uma chance de adentrar no pensamento ocidental. Acredita que assim saberá os erros cometidos pela sociedade karaí para não repeti-los. Os Kaiowá jamais se adequarão à cultura da ganância, do dinheiro e do tempo acelerado. Embora esteja no mestrado, jamais substituirá sua cultura, o conhecimento tradicional é essencial para seu povo.  Clara não quer se adaptar ao nosso mundo, mas acredita que os estudos na universidade ajudam a entender o seus direitos e como reivindicá-los.

A disparidade entre o mundo indígena e o branco também é  motivo para reinvidicar uma escola em Laranjeira Ñanderu. O sonho se mostra visível na casa de reza, localizada no centro da aldeia, onde haviam poucas cadeiras e um pequeno quadro negro. Não é propriamente uma sala de aula, mas um local de estudos das crianças que percorrem quilômetros para receber a educação branca, muitas vezes sujeitos a preconceitos pelos colegas de classe por não falarem bem a língua portuguesa. Os indígenas, que vivem em um pequeno trecho do que consideram seu tekoha, conquistaram o direito de receber o ônibus na comunidade para levar as crianças até a escola, localizada no município de Rio Brilhante.

 

O estudo para as novas gerações é visto como uma necessidade que não existia no passado. Essencial para a comunicação entre os indígenas e os karaí, o conhecimento da língua portuguesa e dos direitos constitucionais é uma forma de defesa e enfrentamento. Construir uma escola na comunidade significa fortalecer a cultura Kaiowá, manter a língua guarani e transmitir o conhecimento tradicional para as novas gerações. Um sonho antigo, surgiu de conversas de Clara com o irmão, Zezinho. O rosto da Kaiowá transmite calma, esconde a saudade que sente do irmão, que era cacique e morreu vítima de atropelamento na BR-163.  A morte do irmão foi o motivo para se tornar liderança em Laranjeira Ñanderu.

 

- O que me motivou pra ser lutadora do meu tekoha é essa questão de ver meus parentes sofrendo muito. Eu não posso ficar de braços cruzados, vendo os parentes morrendo, vendo meus parentes sendo maltratados, vendo meus próprios irmãos mortos. O que me motivou muito é a luta do meu irmão, em memória dele eu resolvi ser lutadora.

A mesma estrada que foi protagonista na morte de seu irmão e de outras seis pessoas, também abrigou as famílias de Laranjeira Ñanderu durante quase dois anos após um despejo que aconteceu em 2009. Sujeitos a humilhações e ameaças, viveram na beira da rodovia até conquistarem o direito de permanecer em um pedaço do que consideram ser seu tekoha. A permissão para que ocupassem 50 hectares do trecho de mata, na reserva legal da fazenda Santo Antônio da Nova Esperança, foi garantida por uma liminar até que se finalize o processo judicial. Clara relembra as precariedades da vida na BR. Alojados em barracos, sem alimentação ou água potável, a comunidade também era amedrontada por tiros disparados por jagunços da região.

- A gente tomava água suja, quando chovia enchia a barraca, um ano assim. Pior que animais a gente morava dentro das barracas, mas era a única maneira. Morar na beira de uma Br pra mim era humilhante, sem coração, muitas vezes olha pra essas pessoas e acha que nós não somos humanos. Nosso sonho não é isso, nosso sonho se chama tekoha, onde é o nosso espaço tradicional, nossos ancestrais, onde a nossa história que tá enterrada, isso é pra mim que é morar.

terra sagrada

 Da porteira da fazenda, menos de um quilômetro de estrada antecedem a chegada ao centro da aldeia Laranjeira Ñanderu. A trilha, que se segue em meio à plantação de milho, direciona à casa de reza, uma grande cabana de sapé construída pela comunidade para receber os rituais e rezas tradicionais dos Kaiowá. Quando chegamos na propriedade que abrange o tekoha, logo fomos recebidas pelo filho do dono da fazenda. O homem de meia idade pareceu incomodado com a nossa presença, tentou justificar que não é uma pessoa ruim e que não quer prejudicar os indígenas abrigados a poucos metros dali. Investigações do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF/MS) apontam o contrário, que os proprietários impuseram empecilhos para a entrada de pessoas na fazenda, desde membros da Funai até agentes de saúde, o que impedia o atendimento médico e policial, o transporte escolar e a distribuição de remédios e alimentos.

Sem energia elétrica e internet, o esporte é a principal forma de lazer de crianças e adolescentes da aldeia

Clara mora com os pais em um casebre de madeira e palha

Apesar de terem o direito de permanecer na terra garantida, a luta recém começou. As 153 pessoas da comunidade possuem casas construídas de madeira e sapé escondidas dentro da mata. As moradias, espaçadas entre si, são divididas em grupos familiares, que juntos formam a grande parentela de Laranjeira Ñanderu.  Muitas das casas se perdem entre as árvores e trilhas de poucos centímetros de largura direcionam o caminho até elas. O único lazer presente na aldeia é o campinho de futebol localizado em frente à casa de reza. Ali, crianças e adolescentes brincam enquanto os adultos se juntam para tomar tereré ou chimarrão.

Sem água encanada, energia elétrica e espaço para exercer sua cultura, os Kaiowá ainda tem muito o que reivindicar pela melhoria da terra, educação e saúde, enquanto esperam pelo restante do território pertencente a eles e sua demarcação. Os benefícios requisitados não são para os adultos, mas para a nova geração, as crianças de Laranjeira. Não importa quanto tempo precisem aguardar para que mudanças aconteçam na aldeia, desde que o objetivo seja alcançado e no futuro os jovens reconheçam que alguém lutou por eles.

 

Por residirem no interior da reserva ambiental da fazenda, não há espaço para o plantio. Os indígenas lamentam a situação, pois a principal fonte de renda dos moradores é o Bolsa Família, incapaz de suprir todas as necessidades das famílias. Clara reclama a invisibilidade de seu povo perante os órgãos públicos e a demora em resolver a situação territorial de Laranjeira Ñanderu.

 

A história de Laranjeira Ñanderu vem de muito antes dela e de sua família. Nascida no território Lagoa Rica, em Douradina, Clara e sua comunidade descobriram a história do tekoha e decidiram reivindicar a terra há dez anos. Acreditam que seus ancestrais teriam sido expulsos no começo do século passado, quando houve uma tragédia e os indígenas foram queimados vivos e jogados no rio próximo à aldeia e que dá nome ao município de Rio Brilhante.

O estudo antropológico para identificação e delimitação da terra foi autorizado há quatro anos pela Funai, mas ainda não foi concluído. Após duas retomadas, a comunidade aguarda os lentos passos da Justiça para que possam, enfim, ter completo direito sobre seu tekoha. Mesmo que o território tenha sido modificado pelas atividades do agronegócio, a ancestralidade é o que encoraja a luta pela terra sagrada.

 

- Por mais que nós não temos mais árvores, não temos nada nada na terra, é onde a gente fomos um dia feliz, que pertenceu nossos ancestrais, a nossa história está lá enterrada, não importa se é apenas campo, apenas braquiária, tem coisas que não são nossas. Tudo o que a gente reivindica hoje é a demarcação, ou diria também, não é a demarcação, é devolver as nossas terras que um dia foi tirado de nós.

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