KAIOWÁ
Ñombogueta

55 anos, uma vida de espera pelo tekoha

Os anos na espera pela demarcação da terra tradicional fizeram de Adelaide Sanábria uma estrategista. Nenhuma de suas ações parece ser por acaso.  Comunicativa e decidida foi ela quem nos escolheu para contar sua história. Nos conhecemos na Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá, a Aty Kuña. Adelaide não sabe ao certo quem é o presidente da República, mas foi  ao evento preparada para dar entrevistas e divulgar sua trajetória. Para ela, só assim sua luta se tornará visível para as autoridades.

 

- Nós estamos ocupando, fazer força, fazendo pressão pra demarcar mesmo. Assim a gente vai ganhar, se a criança não chora, não mama né? A gente tem que chorar mesmo, para ganhar as coisas.

 

De sobrancelhas franzidas formando uma expressão séria, Kunã Marangatu, como se chama em guarani, é uma mulher bastante amigável. Quando visitamos seu tekoha, o Tayassu Ygua, ela e sua família estavam mais do que preparados para nos receber. Pintou seu rosto redondo com pigmento preto, colocou um adereço azul parecido com uma faixa na cabeça e pegou o seu takuapu para iniciar o ritual. A família preparou uma apresentação grandiosa para nos encontrar. Por mais de uma hora, cantaram e dançaram para mostrar que estavam felizes com nossa visita. Os jovens prepararam uma atuação, na qual os guerreiros da comunidade atiravam flechas para as crianças desviarem.

Adelaide viveu seus 55 anos no tekoha e nunca saiu dali. Tayassu Ygua é como se chama o trecho de terra retomada em 2015 por 87 famílias Kaiowá.      Os 75 hectares ocupam as fazendas Coqueiro e Santa Helena, no município de Douradina. Tayassu Ygua é apenas um pedaço do território tradicional de Adelaide, onde ela nasceu, a Terra Indígena Panambi- Lagoa Rica. O local serviu como uma reserva  desde os anos 1970, abrigando Kaiowás de todo o estado despejados de suas terras. Nos seus 366 hectares, os moradores viviam confinados em uma área sem matas, matérias-primas ou animais para caça. Em 2011, Panambi -Lagoa Rica foi identificada, delimitada e reconhecida pela Funai, de modo a garantir que a comunidade possa ter espaço para viver de acordo com sua cultura. Seis anos depois, os Kaiowá ainda aguardam a homologação dos 12.196 hectares.

 

A retomada foi uma estratégia para garantir que toda a extensão de Lagoa Rica seja reconquistada. A terra foi então rebatizada e renomeada, como forma de criar vínculos com os deuses, os senhores da criação dos indígenas, animais, plantas e minerais. Além de ser uma maneira de reconhecer que Tayassu Ygua foi dada por Ñanderu aos Kaiowá. Os brancos por muito tempo usufruíram e exploraram a terra, mas agora chegou o momento de sua etnia readquirir seu território sagrado.

 

- O branco já plantaram soja, milho no cemitério antigo do tataravô. Eles já tiraram muito lucro, eles já têm dinheiro no banco, eles já têm carro, já têm trator, já têm todo o maquinário, eles já tá rico. E nós? Nós que é dono de terra. Por isso que nós ocupamos aquela área para nós aumentar aquela terra pra nossa família morar, plantar alguma coisa. Nós temos bastante terra, o branco que não quer dar para nós. É por isso que a gente tem que sofrer. Nós estamos sofrendo mesmo lá na nossa terra. Eu não vou desanimar não, eu vou continuar sempre a luta ainda.

Próximo ao distrito de Bocajá, é possível ver Tayassu Ygua da BR-163. De longe a casa de reza que foi destruída pela chuva ganha destaque. No chão de terra arenosa, menos de um quilômetro é necessário para que estejamos na moradia de Adelaide. A casa, construída de madeira e palha, contrasta com a área quase descampada, onde poucas vegetações resistem. O que não resistiu foi o lago da região, que secou após a construção da rodovia. O pequeno agrupado de casas esconde o tamanho da comunidade, que se perde nos hectares do tekoha.

 

Dependentes da terra, quase toda a alimentação da família Sanábria vem de suas plantações. Mandioca, batata, cana-de-açúcar, milho, banana e feijão são cultivados no território, além da criação de javalis e galinhas e da pesca de peixes no rio Brilhante. Adelaide reclama a falta de outros mantimentos que só são adquiridos com dinheiro, como o arroz, sal, óleo e sabão.

A renda de algumas famílias é proveniente do Bolsa Família e, esporadicamente, de cestas básicas doadas pela Funai. Como nem todos os moradores da comunidade recebem o auxílio, Adelaide divide suas compras de mantimentos com essas pessoas. Para complementar a receita do mês há também aqueles que trabalham em empresas e fazendas da região.

 

- Quando recebe dinheiro eu compra muito arroz, um fardo de arroz. Eu compra uma caixa de óleo, um saco de sal, eu compra e uma caixa de sabão pra distribuir com aquele pessoal que não pegaram a Bolsa Família, porque eu tenho que ajudar aquele pessoa que está aqui. Nós tamo sofrendo assim, sofrendo muito mesmo.

Em Tayassu Ygua não há energia elétrica, após o pôr do sol tudo que se pode ver é a luz da lua e o farol dos carros que passam na rodovia. Apenas uma casa no tekoha possui um gerador de energia e a água para o consumo e afazeres domésticos é armazenada em poços. Adelaide afirma que agrotóxicos são jogados próximos à comunidade e os resíduos chegam ao reservatório, causando dores de cabeça, diarreia e febre.

 

A indígena sabe que a prioridade do momento é a demarcação de seu tekoha. A implantação de um posto de saúde e uma escola no território serão suas próximas reivindicações. Há 120 dias, a aldeia não recebe visita de médicos do município, apesar da grande quantidade de gestantes e bebês na região. Além disso, a falta de escola também é um problema. As crianças estudam na rede municipal e, além de esperar pelo ônibus escolar na beira da BR, têm que se submeter ao ensino tradicional e ao preconceito dos colegas por serem indígenas.

tayassu ygua ameaçada

Lutar pelo território de origem contra latifundiários, faz com que os moradores de Tayassu Ygua não estejam seguros em suas terras. Residentes em uma área ocupada, eles recebem ameaças de morte frequentemente. Uma das fontes de alimento da aldeia vem do rio, com a pesca. O rio, além de contaminado por agrotóxicos, oferece outro empecilho para a alimentação da aldeia: é vigiado por pistoleiros. Kuña Marangatu conta que por diversas vezes foi recebida por tiros ao chegar no local de pesca.

 

- Uma vez eu fui pescar lá pertinho do rio, ali tem bastante peixe. Eu e todos os meus netos, que foi pra lá. Quando chegava lá, pegava bastante peixe, escutei o barulho do tiro. Atiraram de bem longe, a bala passou bem em cima. A companheira ficava doida, falava 'nós vamos correr, mãe'. Eu não vou correr não, vamos ficar aqui mesmo. Até que ele atirou três tiros e depois sentou, eu vi que aquele homem tava bêbado. Aí nós pegou bastante peixe e viemos pra cá. Mesmo que ele atira, nós não desanima não, porque lá tem bastante peixe pra trazer pra nossa família aqui.

Além dos tiros disparados contra os moradores, o medo de sair da comunidade impede que muitos possam trabalhar fora dali. Adelaide e sua família evitam ir a qualquer lugar sem um carro ou moto para transportá-los. Para eles, é perigoso andar a pé ou de bicicleta por conta dos atropelamentos. Mãe de dez filhos, ela chora de saudades de Alessandra Sanábria, atropelada por um caminhão na rodovia enquanto atravessava a ponte próxima a Tayassu. O motorista fugiu sem prestar socorro à vítima.  Apesar de comuns e padronizados, o antropólogo Marcos Homero Lima do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF/MS) alega que não há como provar que os atropelamentos são encomendados. Adelaide afirma com a certeza de que sua filha não morreu por acaso.

 

- A gente tem que pintar o rosto, lá ameaça dia e noite. Ele quer achar nós na estrada e levar acidente com carro e a gente morrer. Ele vai falar 'o índio que passou na frente do carro e morreu'. Não, ele mesmo mataram a minha filha, não sei se você viu na internet, na televisão. Foi agricultor de Douradina, mataram minha filha Alessandra Sanábria, lá no ponte, bem assim lá no ponte.

Alguns kaiowás acreditam que as pinturas no rosto servem como disfarce

Durante os rituais, as crianças também têm seus rostos pintados

As ameaças são constantes, mas a comunidade não tem medo de enfrentar o latifúndio. Os moradores planejam ocupar a área de cerrado do território, um dos poucos locais ainda não desmatados pelos proprietários.

 

- Só 450 hectares tem mato, o resto não tem mais mato. Os ruralista terminaram com tudo. Agora aqueles 150 hectares eles tão querendo também derrubar de novo, mas a gente não vai deixar derrubar aquele mato. No mato tem tatu, tem anta, capivara, vários bichos. A gente vai ocupar mesmo aquela área.

 

Esperançosos, sonham um dia reconquistar não só o tekoha, mas a natureza que ali havia. Eles acreditam no tekoharã: um dia a terra voltará a ser o que era antes, no solo tudo renascerá e o sofrimento terá fim.

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