KAIOWÁ Aty Kuña Guasu

A assembleia das mulheres Guarani e Kaiowá

Destemidas e determinadas, as legítimas filhas do Brasil. Kuñas de garra e coragem, que não fogem à luta. Kaiowás, filhas órfãs da mãe terra, abrigadas pelas rodovias. Suas perdas não são noticiadas, nem somam à estatística do estado agropecuário e genocida do centro-oeste do país, Mato Grosso do Sul.

 

É no Cone Sul do estado que os caminhos das personagens de nossa narrativa se cruzam e entrelaçam na resistência e na luta pela retomada de seus tekoha, terras de onde foram expulsas, junto de suas famílias, por fazendeiros e latifundiários.

 

Uma terra sagrada, o tekoha é de extrema importância para os Guarani Ñandeva e Kaiowá. Do guarani, tekoha significa "o lugar onde somos o que somos", e é o local onde as comunidades vivem de acordo com sua organização social e cultural. Mais do que um pedaço de terra, está relacionado à espiritualidade dos indígenas. É no tekoha que os ancestrais estão abrigados. Abandonar o tekoha significaria abandonar a própria família.

 

Existem mais de 70 mil indígenas no estado de Mato Grosso do Sul de acordo com censo de 2010 do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar da população expressiva, eles muitas vezes não têm seus direitos reconhecidos. Segundo relatório de 2016 divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no Brasil 40% das terras indígenas reivindicadas permanecem sem providências. Dos 1.296 territórios, apenas 21 são de propriedade das comunidades. Há dez anos, o Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF/MS) firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Fundação Nacional do Índio (Funai) para a demarcação das terras do Cone Sul do estado. Porém, as comunidades indígenas permanecem à espera de uma resolução. Alguns territórios não tiveram ao menos os estudos antropológicos iniciados.  Recuperar o tekoha é um processo difícil e lento, são várias etapas administrativas até que a área seja registrada como indígena.

Mulheres Guarani Kaiowá. Donas de estaturas baixas e da grandeza da força, motivadas pela falta de ouvidos atentos do país às suas reivindicações, a se unirem à outras mulheres que compartilham das mesmas condições de vida. Participantes da assembleia Aty Kuña Guasu. Em guarani, Kuña significa mulher e Aty Kuña é a assembleia delas.

 

Aty Kuña Guasu é voz. Voz das mulheres diante de seus maridos. Voz das Guarani Ñandeva e Kaiowá perante o Estado. Sem medo da reprovação das pessoas presentes, elas falam alto, gesticulam e apontam a falta de atitude dos representantes na garantia dos direitos das indígenas.

 

Clara Barbosa, uma mulher de cabelos pretos curtos e de feição serena era uma das organizadoras do evento, mais conhecido como Aty Kuña. Ela se destacava entre as indígenas por ser uma estudante de mestrado e por sua pronúncia precisa diferente de outras Guarani – muitas mesclam na fala a língua nativa com o português carregado. Assim que nos aproximamos para fazer o primeiro contato, uma mulher chegou ofegante:

 

- Os homens estão separados, fazendo uma reunião só deles!

- Ah mas isso a gente não vai deixar mesmo!

 

Ela se afastou e se juntou às outras para resolver o problema. Um grupo de cerca de 20  homens estava reunido sob pés de eucalipto, as únicas árvores que se podia avistar no território cercado por plantações. Eles tomavam tereré e conversavam, alheios às discussões propostas pela assembleia, que acontecia a poucos metros dali.

 

Os Guarani Kaiowá têm alguns conflitos de gênero, as mulheres são consideradas a alma da casa, responsáveis por cuidar dos filhos e do território, enquanto os homens geralmente ficam à frente da discussão política e saem para trabalhar fora. É comum que os homens queiram sobrepor suas vozes. Durante muito tempo, a Aty Guasu –   a grande assembleia Guarani e Kaiowá - foi realizada e as mulheres ficavam como coadjuvantes de uma história que também era delas. Até que resolveram se reunir para formar a assembleia das mulheres, onde discutiriam assuntos além do território, como saúde, educação e violência doméstica. Clara é uma das articuladoras do evento e falou sobre a Aty Kuña e o papel da mulher Kaiowá.

 

Tudo surgiu quando uma rezadora da Aldeia Jaguapiru em Dourados, Alda Silva, teve um sonho após suas noites de reza. O sonho dizia que ela deveria organizar a luta das mulheres Guarani Ñandeva e Kaiowá.

Há relatos de que a Aty Kuña não é uma ideia recente, de que as mulheres Kaiowá teriam se reunido em uma assembleia ainda nos anos 1970, porém há muito tempo não acontecia e elas sentiam necessidade de fazer parte do debate. Em 2006, ocorreu o que ficou conhecida como a primeira Aty Kuña, quando cerca de 500 pessoas se reuniram em Ñanderu Marangatu, no município de Antônio João para debater os assuntos que permeiam a dura vida de um povo esquecido pelo seu país. A realização do evento não segue uma linearidade. Depois da primeira assembleia, pouco se falou sobre ela, até que em 2012 foi retomada e aconteceu nos dois anos seguintes.

 

A Aty Kuña, que não ocorria desde 2014 por falta de recursos para buscar todas as mulheres em seus territórios, teve sua última edição em setembro de 2017, entre os dias 18 e 22,  na retomada de Kurussu Amba II em Coronel Sapucaia, município próximo à fronteira com o Paraguai. Durante quatro dias, cerca de 500 homens e mulheres se reuniram sob uma grande tenda para discutir os problemas que enfrentam diariamente. Representantes de vários órgãos estiveram presentes, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Organização das Nações Unidas (ONU). No evento, as mulheres se posicionavam à frente da discussão, dando a palavra aos homens sempre que necessário e expunham o martírio a que estão expostas: a violência, falta de água potável, alimentação, moradia, educação e saúde.

Além  dos órgãos convidados, vereadores, um deputado estadual e um aspirante a deputado também participaram da assembleia. Alguns realmente engajados com a causa indígena há tempos, já outros apenas para tentarem se promover junto àqueles eleitores ávidos por algumas palavras de esperança. Os indígenas, entretanto, não são ingênuos. As mulheres observavam a fala dos políticos e discordavam e até discutiam quando absurdos eram ditos. Em certo momento da discussão, um dos vereadores insinuou que os Guarani Ñandeva e Kaiowá não tinham organização entre eles e que o movimento indígena era enfraquecido pela preguiça dos membros em participar ativamente do debate.  Enquanto indígenas e convidados se retiravam da tenda como sinal de desagrado, Helena Gonçalves, liderança do território Mbarakay, observava atenta ao discurso e deixava clara sua insatisfação quanto à atitude do vereador, acenava negativamente com a cabeça e cochichava junto a outras mulheres. Dona Helena, que já viajou  até  Brasília para falar sobre a sua luta com órgãos e autoridades governamentais, se indignou ao ouvir que os indígenas eram pouco engajados no movimento.

 

A maioria dos discursos era interrompida frequentemente por danças no centro da tenda. Era o ritual de "boas vindas" aos novos participantes da assembleia. Círculos se formavam, compostos pelos visitantes e os homens indígenas com seus mbarakas. Gradativamente o ritual se pluralizou, até que convidados, mulheres e crianças também participassem.

Durante as discussões, os homens interrompiam com um ritual de danças e cantos

À frente da discussão, as mulheres mediavam os discursos dos participantes

As Guarani, à frente da discussão, mediavam os discursos. Tinham firmeza nas palavras e a certeza de cada reivindicação que faziam. Elas, as donas do lar, responsáveis pelos filhos e pelos cuidados com o território, são quem passam na pele as precariedades da vida indígena. São quem enfrentam as consequências do que é ter os direitos básicos negados pelo Estado, como a educação, saúde, água e a alimentação. Algumas das mulheres  preferiam ter suas histórias contadas pelas líderes da assembleia. Dona Damiana Cavanha foi uma delas, pelo português carregado de guarani e por estar abalada com o recado que trazia, teve sua luta exposta nas palavras de outra mulher do movimento. Damiana não falou, mas o recado ficou claro: não vai soterrar na memória o que fizeram com o cemitério de seu pai, em breve pretende voltar ao tekoha.

terra de Kaiowá

Rumo a Coronel Sapucaia, 30 quilômetros de estrada de chão antecedem a chegada à Kurusu Amba. O verde do caminho foi substituído pelo amarelo soja. O horizonte se estende em grandes extensões de terra que pertencem à um grupo pequeno de pessoas, são as fazendas da região.

 

Kurusu Amba foi o território escolhido para receber a assembleia devido ao perigo constante que os indígenas estão sujeitos. Realizar um evento ali seria um ato de resistência, para mostrar que os Guarani não têm medo das ameaças e que não iriam se calar. A retomada de Kurusu foi feita por cerca de 50 famílias Kaiowás em 2014, quando cansados das condições desumanas de vida à beira da estrada, a comunidade resolveu reaver uma pequena porcentagem de seu território de origem. A terra está dividida em três partes: Kurusu Amba I, II e III.

 

Desde então, as famílias estão sujeitas a ameaças constantes de jagunços das fazendas vizinhas. É comum ouvir relatos de que eles vêm à comunidade para intimidar os novos moradores, rondando os acampamentos dia e noite. Por esta razão, na Funai fomos até orientadas a não passar a noite na região.

A retomada Kurusu Amba, em Coronel Sapucaia, foi uma escolha simbólica para receber a assembleia das mulheres

Próximo à tenda, a escola das crianças é a única casa de alvenaria no território e foi usada como cozinha para alimentar os participantes

Vindos de diversas cidades do sul do estado, os participantes da assembleia dormiram no local, em tendas feitas de lona preta e estruturadas por galhos de árvores. Sem energia elétrica, todos dividiam um banheiro e se alimentavam com a refeição servida pela organização do evento. Na cozinha de uma pequena casa, ocupada pelas famílias durante a retomada, algumas mulheres cozinhavam para todos. Geralmente, a refeição era composta por macarrão, arroz e feijão. A carne era ausente ou pouca. Após o anúncio do horário de almoço, uma fila enorme se formava por homens, mulheres e crianças, que esperavam, com pequenos potes de plástico ou isopor, por aquela que parecia ser a única refeição do dia.

Na cozinha, algumas mulheres se reuniram para cozinhar o almoço que serviria as 500 pessoas

Uma das cozinheiras esperava o macarrão cozer para servir os ansiosos participantes

Depois do almoço, as pessoas voltavam para suas barracas e aguardavam a discussão começar. Encontramos Adelaide Sanábria em uma das tendas. Enquanto andávamos pelo território com uma câmera no pescoço e tripé nos braços, Adelaide logo identificou nossa (futura) profissão. Nos chamou e pediu que fossemos até ela.

 

- Você é jornalista? Eu quero dar a minha palavra.

 

Preparada, ela parecia estar esperando alguém da imprensa para contar sua história. Nas mãos trazia um mapa, no qual explicava a localização do seu território Tayassu Ygua e nos convidou para que pudéssemos visitar e conferir pessoalmente as condições de vida da comunidade. Além do mapa, trazia alguns documentos, como uma portaria da Funai e o Diário Oficial da União. Os documentos também mostravam a localização do território, além do andamento do processo da demarcação. Como um comprovante, Adelaide não se separava dos papéis que diziam que seu território foi demarcado e aguarda pela homologação.

 

Ao final do nosso último dia na assembleia, o sol se punha e os indígenas começaram um ritual, desta vez puxado pelas mulheres. Todos cantavam e dançavam, como uma comemoração pelo fim de mais um dia de discussão e pelo fato de o presidente da Funai ter comparecido. Nos despedimos de Kurusu Amba e das quatro mulheres. Levamos a certeza de que voltaríamos a encontrá-las.

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